6/08/2007

Cruzamentos

Estava quente, ainda bem que não vestira casaco. Também devia estar quente para o velhote sentado no muro do mini-mercado, de camisa de manga curta, às riscas, calças de tecido, cinzentas. Os joelhos ficavam à altura do peito, apoiados nos joelhos tinha os cotovelos...Numa mão segurava, preguiçosamente, um cigarro que ia fumando como quem se obriga a respirar. Noutra mão segurava um saco de plástico de supermercado. O que teria lá dentro? Alguma coisa que comprou. Olhou de soslaio, manteve o ar decidido de quem se dirigia a algum lado. Tinha a certeza que o velho olhava para ela. Continuou, consciente do efeito que devia provocar. Pena que não se dirigisse a lado nenhum e de nada lhe valesse o vestido novo. Por momentos quase se esqueceu de que não era o velho o abandonado e ela a rapariga decidida cuja vida esperava nalgum sítio. Por momentos quase se esqueceu que não tinha ninguém com quem ir ter. E teve inveja do velho que estaria à espera de alguém, que tinha um objectivo, que tinha um saco e um cigarro. Pelo menos ele teria alguém. E esse alguém estaria para chegar pela forma como quase se levantou quando passou um carro. Afinal não era. Voltou a sentar-se e a olhar para o prédio do outro lado da rua...

A rapariga da janela olhava para o fundo da rua, também devia estar com calor, senão não viria à janela... estava com uma camisola velha de trazer por casa e parecia ter vindo aproveitar o momento de pausa. Com certeza estava a estudar, era a época em que havia exames na Universidade. Desejava ter também alguma coisa para fazer, em vez de estar ali sentado com um saco ridículo na mão... e logo um saco do supermercado. Lá dentro só mesmo a carteira, vazia! A rapariga olhou para ele mas não se deteve. Devia estar preocupada, quem lhe dera ter também preocupações. Fumou pacientemente o cigarro enquanto fingia um gesto para se levantar como se aguardasse alguém e o alguém estivesse para chegar. Que inveja da rapariga da janela. Tinha algo que a esperava em vez de estar jogada para o nada, como ele. Tinha um objectivo... o dele era só estar ali. Ouviu passos de salto alto no passeio, passos que se aproximavam...

Já tinha saudades de estar à janela a olhar para a rua. Não tinha falta de tempo... esse agora tinha de sobra, desde que desistira de estudar... Olhou para o fundo da rua e viu a rapariga com um vestido lindo... quem lhe dera ter dinheiro para comprar também um. E os sapatos de salto alto, a embalar a rua com o ritmo dos passos. Com o vestido compraria aquela postura, aquela pose, aquela cabeça levantada e andar decidido. É isso havia de arranjar um vestido, com ele viria uma vida. Teria sítios onde ir, pessoas com quem ir ter, como a rapariga que andava no passeio. Talvez até encontrasse os velhos amigos, talvez até arranjasse um novo sonho de vida, um novo projecto. Sim, seria como a rapariga do vestido. Mas por enquanto não era, e invejava-a...

1 comentário:

Beste disse...

Rita, adorei a mudança visual que fizeste aqui nesta tua casa! Acho importante alterarmos as coisas de tempos a tempos, pois desse modo tudo renasce e até a própria maneira de olharmos para o comum é diferente. Beijinhos blogueiros!